Imagem: Bernard Plossu
Rosa Oliveira. Cinza. (Tinta da China, 2013)
as casas em espinho com ruy belo
– que nome
existe para isto que nem mesmo é alegria
Ruy Belo, boca bilingue
com este aspecto esplêndido diz ele que vou pela rua principal
as casas resplandecem onde menos se espera
na encruzilhada uma delas espreita e diz aqui estou sentada
abrem-se armários há estolas de raposa cor de rosa velho
atentas, vigiando há décadas
vestidos negro azeviche e brilhante
prontos a serem transportados
para alguma cidade desfiada e gélida
varandas triangulares apontam para o centro do inverno
na cauda da cidade um terraço gigantesco espera os cães da tarde
perdido em casebres de papel pintado
o cheiro a brócolos nas escadas
exemplo do pôr-do-sol aqui pousado eternamente
tu envolto no amarelo cansado de fim do verão
como são estas vidas suspensas e convictas
disponíveis na sua clausura de casas de outro tempo
imanência e rigor da poesia
releio ruy belo
insuportável como a música
a cara do meu filho está na página seguinte
truques que o pensamento débil nos ensina e que ruy belo não permite
é insuportável ler rodoreda com as suas flores espalhadas
é insuportável a literatura
único bem neste pôr-do-sol e em todos os outros
virar a página assusta como a guinada no coração
ao conduzir uma leve tontura
presságio do acidente que nunca chega
parábola do ataque cardíaco
alguma coisa na memória antecipada do nosso corpo
produz um pó inútil
daquela casa via o nevoeiro eterno,
as varinas gritavam “vivinha d’espinho!”
sentia o rumor das aldeias que acorriam à feira e eu com elas
o pôr-do-sol é platão que regressa
dizem que era feio
e que aristóteles era um janota
o pôr-do-sol inclemente do peloponeso
não é o pôr-do-sol melancólico
escandinavo de espinho
é um poema longo com prefácio intrincado
virado para dentro
como tu do avesso
o livro está pousado como a mão de um homem
queria ser a forma distendida do poema
deambulação sem mapa
tenho os olhos secos com a poeira da leitura
respiro fundo
sei que o único lugar é este
no tecido agreste das tuas palavras
leio ruy belo
há outros homens por trás dele
caindo um a um nas páginas opacas
poemas longos como o sofrimento
linhas contínuas de anestesia
postfácios de livros em branco
enrolados na espuma insólita do mar de espinho
meio dia na areia fina e brilhante
o quartzo microscópico reflecte o sol a pique
esse mineral generoso de nome incerto
na avenida 8 espera-me outro poeta que pede gins
e adormece em todos os balcões
murmura relatos de quando enlouqueceu
e saiu nu debaixo de um casacão de inverno
com um frasco de eno no bolso interior
tinha medo da contra-revolução
esbracejava na rua dentro do casaco armadilhado
e repetia a quem passava:
“hoje é a noite certa para a vida!”
uma tarde esperou-me sóbrio na esplanada
exaltou um novel romancista que li com certa forma de nojo
a literatura está cheia de gente com prosápia
gente acéfala que recebe prémios
e quando não recebe
descalça-se e geme de olhos fechados como os fadistas
os fadistas da literatura ainda são mais intoleráveis
que os fadistas de viela
nada disto está aqui já em espinho
cidade como beirute com as vísceras a céu aberto
a caminho de madrid
imprimes mentalmente o teu capítulo da história literária
unívoca
em linha recta como a porrada metafísica
do outro elemento sempre a candidatar-se ao soco
há quem disserte sobre um real que não regressa nunca
não pode regressar por impossibilidade teórica da alegria
a luz dourada das folhas treme
o vento constante, insistente
sobre a luz derramada em espinho
poderia ficar aqui até começar a canção de setembro
ver passar a senhora da ajuda
sobre tapetes idiomáticos de flores e conchas
não posso ler porque as palavras cheiram a ti
calo-me e emudeço
para sempre não é palavra aceitável
preciso de cigarros
não sei fumar
escrevo no verão como ruy belo
vejo o declinar do sol sobre a barba profética
na busca de uma epifania que salve alguém
que faça qualquer coisa para cá da morte
sentada nos meus dias nos meus sonhos
assisto à vida ínfima das coisas e de nós nas coisas
objectos úteis que nos fazem tropeçar
acordos, mediações
olhos nos olhos com o mal
estou no fundo das escadas da casa da rua 18
a escrever primeiro e pensar depois
as ruas antigas não mudavam de cara de ano para ano
enquanto pestanejas dura a guerra de tróia
I am the distance you put between
all of the moments that we will be
you know who I am
You’ve stared at the sun
I am the one who loves
changing from nothing to one
em 78 ouvia cohen e lia ruy belo e comovia-me
não sabia bem para quê
em 78 ninguém se comovia sem razão
seria comoção racional vinda do futuro
um toque de melancolia de montaigne
espinho, portugal a precisar de elegias
ecos distantes
quase radiofónicos
de opiniões sobrepostas
os fenícios talvez tenham passado por aqui
deixando pegadas na areia
onde estão os fenícios hoje?
onde estaremos amanhã
depois de gastarmos as energias que nos eram destinadas?
onde estamos nós na memória dos fenícios?
o sol acabou de mergulhar
ao longe já não vejo as casas convalescentes da granja
levanto-me e caminho no paredão
que pessoa vou ser agora?
fallaste corazón
no vuelvas a apostar
las casas en espinho con ruy belo
-qué nombre
existe para esto que ni siquiera es alegría
Ruy Belo, Boca Bilingue
con este aspecto espléndido dice él que voy por la calle principal
las casas resplandecen en donde uno menos se lo espera
en el cruce una de ellas otea y dice aquí estoy sentada
se abren armarios hay estolas de zorro color rosa palo
atentas, vigilando desde hace décadas
vestidos negro azabache brillante
listos para ser transportados
a alguna ciudad desmigajada y gélida
balcones triangulares apuntan hacia el centro del invierno
en el extremo de la ciudad un descampado espera a los perros de la tarde
perdido en chozas de papel pintado
el olor a brócoli en las escaleras
ejemplo de la puesta de sol posado aquí eternamente
tú envuelto en el amarillo cansado del final del verano
como esas vidas suspendidas y convictas
disponibles en su clausura de casas de otro tiempo
inmanencia y rigor de la poesía
releo a ruy belo
insoportable como la música
la cara de mi hijo está en la página siguiente
trucos que el pensamiento débil nos enseña y que ruy belo no permite
es insoportable leer a rodoreda con sus flores esparcidas
es insoportable la literatura
único bien en esta puesta de sol de todos los demás
pasar la página asusta como el sobresalto en el corazón
al conducir un leve mareo
presagio del accidente que nunca llega
parábola del ataque cardiaco
algo en la memoria anticipada de nuestro cuerpo
produce un polvo inútil
de aquella casa venía la niebla eterna
las pescaderas gritaban «¡pescado fresco de espinho!»
oía el rumor de las aldeas que acudían a la feria y yo con ellas
la puesta de sol es platón que regresa
dicen que era feo
y que aristóteles era un presumido
la puesta de sol inclemente del peloponeso
no es la puesta de sol melancólica
escandinava de espinho
es un poema largo con prefacio intrincado
vuelto hacia adentro
como tú al revés
el libro está posado como la mano de un hombre
quería ser la forma distendida del poema
deambulación sin mapa
los ojos secos con la polvareda de la lectura
respiro hondo
sé que el único lugar es éste
en el tejido agreste de tus palabras
leo a ruy belo
hay otros hombres detrás de él
cayendo uno por uno en las páginas opacas
poemas largos como el sufrimiento
líneas continuas de anestesia
postfacios de libros en blanco
envueltos en la espuma sólida del mar de espinho
mediodía en la arena fina y brillante
el cuarzo microscópico refleja el sol a pique
ese mineral generoso de nombre incierto
en la avenida 8 me espera otro poeta que pide gyn-tonics
y se duerme en todas las barras
murmura relatos de cuando enloqueció
y salió desnudo debajo de un abrigo
con un frasco de sal de frutas en el bolsillo interior
tenía miedo de la contrarrevolución
braceaba en la calle guarecido dentro del abrigo
y repetía a quien pasaba:
«¡hoy es una noche exacta para la vida!»
una tarde me esperó sobrio en la terraza
alabó a un narrador novel que leí con cierta forma de asco
la literatura está llena de gente de alcurnia
gente acéfala que recibe premios
y cuando no los recibe
se descalza y gime con los ojos cerrados como los fadistas
los fadistas de la literatura son aún más intolerables
que los fadistas de cuerda
nada de esto persiste en espinho
ciudad como beirut con las vísceras a cielo abierto
de camino a madrid
imprimes mentalmente tu capítulo de la historia literaria
unívoca
en línea recta como la ostia metafísica
del otro que siempre está dispuesto para el golpe
hay quien diserta sobre un real que no regresa nunca
no puede regresar por imposibilidad teórica de la alegría
la luz dorada de las hojas tiembla
el viento constante insiste
sobre la luz derramada en espinho
podría permanecer aquí hasta comenzar la canción de septiembre
ver pasar a nuestra señora de ajuda
sobre alfombras idiomáticas de flores y conchas
no puedo leer porque las palabras huelen a ti
me callo y enmudezco
para siempre no es una palabra aceptable
necesito cigarrillos
no sé fumar
escribo en verano como ruy belo
veo declinar el sol sobre la barba profética
en busca de una epifanía que salve a alguien
que haga algo más acá de la muerte
sentada en mis días en mis sueños
asisto a la vida ínfima de las cosas y de nosotros en las cosas
objetos útiles que nos hacen tropezar
acuerdos, mediaciones
mirando a los ojos del mal
estoy en el fondo de las escaleras de la casa de la calle 18
escribiendo primero y pensando después
las calles antiguas no mudaban de cara de año en año
mientras pestañeas dura la guerra de troya
I am the distance you put between
all of the moments that we will be
you know who I am
you’ve stared at the sun
I am the one who loves
changing from nothing to one
en el año 78 escuchaba a cohen leía a ruy belo y me conmovía
no sabía bien para qué
en el año 78 nadie se conmovía sin razón
sería una conmoción racional llegada del futuro
un toque de melancolía de montaigne
espinho, portugal devorando elegías
ecos distantes
casi radiofónicos
de opiniones superpuestas
los fenicios tal vez hayan pasado por aquí
dejando huellas en la arena
¿dónde están hoy los fenicios?
¿dónde estaremos mañana
después de haber gastado las energías que nos eran destinadas?
¿dónde estamos nosotros en la memoria de los fenicios?
el sol acabó de sumergirse
a lo lejos ya no veo las casas convalecientes de la granja
me levanto y camino por las murallas
¿qué persona voy a ser ahora?
fallaste corazón
no vuelvas a apostar