Mario Montalbetti Fin desierto y otros poemas, 1997. Incluido en Lejos de mí decirles, Poesía reunida (1978-2016). Ediciones Liliputienses, 2017
TELARMACHAY ECLIPSES
perder
perder
para encontrar
o que foi tirado da boca do jaguar
perder perder tudo
e quando perderes tudo
hás de perder isso também
onde antes não vias nada
há enquanto uma pedra sobre outra
onde antes não ouvias nada há um ritmo de varas de urze
nas tardes lá fora a golpear a terra golpeada
os cadáveres imensamente mortos
que deixaste no caminho
dizem não-jaguar não-caverna não-vasilha
só manto
e piedade pelos feijões e as moscas
isto é tudo o que ignoravas
por quereres ganhar o céu
guitarrista diz não-lasso não-água não-templo
só fardos
encerrando peixes
aprisionados entre os dentes de outros peixes
parece mentira terem vivido cem séculos nestas serras
domesticados pelos animais
que não souberam domesticar o nosso apetite
e que logo domesticámos
com as quatro ervas que nos abrigaram
e que terminaram também queimadas
em fogueiras de prata
telarmachay diz não-crânio não-extremidade não-crânio
só mulher
sentada entre montanhas
como uma navalha afiada de um só gume
acariciando o rosto do trono
embalando as cataratas
as marés do regozijo e da pena
não têm domínio sobre esta carnificina
dá-me tudo
a peste a tarde a duração dos quadros
os despojos de ouro e prata
dá-me os metais
dá-me o que te falta
carva diz não-cabeças cupisniques
a degolar-se
(viras essa expressão nalgum outro rosto?
é assim
nunca o saberás)
diz-me nada
este interregno esta paz
não durarão
degolou-se a cabeça com uma navalha de chifre de taruca
pensou no manto debaixo dos seus pés
vermelho negro ocre vermelho
pelicano serpente moscas
subsolos de huántar
o sangue
a flora exausta
dá-me tudo
é indispensável crer em nada
fardos
e de passagem
de que lado estavam as paredes
zigzagueando de rosa em rosa
à procura suponho
de algo dentro algo fora?
pensei que aqui havia uma ausência uma perda
enganei-me
ao ver o que se vê quando não se quer ver
o deserto o basto a palavra
e assim não ver a pedra sobre a pedra
diz-me nada
essa é a única condição para eu ficar com tudo
nunca acreditei que fosse verdade
que não podiam caminhar
que não podiam agitar-se
que não podiam mudar de posição
nem recostar-se de lado nem boca abaixo nem sobre as suas costas
até que me passou pela cabeça
que também me aconteceu a mim
a extraordinária beleza do manto
me fez vulnerável
à vida de outros
com cáries mais radicais
irradiando do fundo de abismos atravessados
dentes de altura
caranguejos atados a cordas precárias penduradas no céu
a anunciar um interlúdio imuno deficiente
(estas são as mortais marionetas de cor
cinzento sobre cinzento)
a propósito
perco o tempo
toda esta gente que caminha até ao mar
onde vai?
que procuram deixar além da vida?
o lugar é agora
uma torre de cidades arruinadas
os túmulos abertos dessacralizados
contêm os ossos de astrónomos sexuais
que acreditaram ver órbitas exatas
à volta de corpos
desnecessários
os tradutores foram sepultados de cabeça
retirados do resto
as teorias são
prisões de segurança máxima
(algo do género disse Quijano ou assim que as ideias
são prisões de longa duração)
e Flores Galindo:
‘as palavras seguem um itinerário paralelo às mortes’
e por isso há tantas palavras
em forma de garra em forma de molar
de vagina e de gengiva
e por isso esta linguagem
aperfeiçoada pelos nossos terrores
espiã das nossas mortes
conselheira de chagas
esboça este rictus final e funerário
quirihuac diz não-relâmpago não-deserto não-morfema
só o ruído dos terraços marinhos
a acomodar-se
como serpentes de escamas obscuras e raspadas
ejaculando um sémen negro e glacial
deslumbrante
o fim do que acaba por terminar
agrega-se como um segmento mais
um hino uma denúncia
uma bênção de arte
os venenos começaram por ser abstrações
e tornaram-se
relatos que tardaram a fazer efeito
mordidas no vento salgado
foi o inverno outra vez
e nós nele
disse sémen negro atrás e glacial
pensava numa noite em chimbote
no nevoeiro a sair do mar
nas esculturas de pedra nos caninos verticais
a sair do mar
e
ainda
nas reconversões das nossas melhores noites
um desenho de fundo
abre caminho
entre as camadas de azeite e alcatrão e trementina
à sombra do rio o carvalho é fonte
nazca diz não-macaco não-calendário não-linha
só tábua rachada
frente ao altar de pedra submerso entre neves perpétuas
fazem-se perguntas improváveis
pedem pela raposa para que interceda pelo lago
abrem suas almas ao huayco
tentei com as vendas
cobrir os olhos tapar
os ouvidos com algodão
enfronhar minhas mãos em luvas cheias
de mel de flor de laranjeira
meus dedos nos seios nasais até tocar a pituitária
forrar de azul a língua
tempo é o que compras com a visível ausência
dos olhos e os poços e as cimas
esse corpo é uma aspa sobre os telhados um gânglio
tomado
uma pele curtida pelas fogueiras das cavernas
ainda
um desenho na parede recorda-me
que também despertei nessa parcas obscuridades
minha mão amadureceu cedo
com os perfis de felinos desesperados
mas acabou entregue à violência
há algo inerentemente tóxico na cólera
(nesta cólera) talvez
seja a forma em que se move tão parecida
aos tombos rupestres
que faz com que seja impossível de domar de se parar sobre ela
nos seus lombos salgados
a falta de trégua
o dia da sede
nas noites lá fora
raqchi diz não-piada não-idade não-céu não-cascalho
com frequência
aprecio a qualidade deste silêncio
e das pedras que se agruparam à sua volta
para formar um templo
para formar uma fortaleza
um cemitério um estábulo um bordel
este silêncio suave como o excremento
mas insolente como uma rosa
arrojada
do outro lado do nevado estava a noite
(ainda há lugares a que não vou)
as trutas tristes da oroya
esgaravatadas da neve e o frio
ainda há lugares a que não vou
ódio
emanou destas procissões
mas também homens
mulheres a respirar na obscuridade
examinando ou pondo à prova
uma fé
tenaz como uma mirada posta na montanha
um sol vazio esconde-se na sua própria sombra
perder
perder
perder para encontrar
o que foi tirado da boca do jaguar
calar por aqueles
que não puderam falar
perder a vida perder a morte
TELEMARCHAY ECLIPSES
perder
perder la vida perder la muerte
Tradução: José Pinto
Pingback: mario montalbetti – umacerveja