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Imagem: Bill Morrison.

Waly Salomão (1943-2003). Algaravias-Câmara de ecos, 1996.

Carta aberta a John Ashbery

A memória é uma ilha de edição – um qualquer
passante diz, em um estilo nonchalant,
e imediatamente apaga a tecla e também
o sentido do que queria dizer.

Esgotado o eu, resta o espanto do mundo não ser
levado junto de roldão.
Onde e como armazenar a cor de cada instante?
Que traço reter da translúcida aurora?
Incinerar o lenho seco das amizades esturricadas?
O perfume, acaso, daquela rosa desbotada?

A vida não é uma tela e jamais adquire
o significado estrito
que se deseja imprimir nela.
Tampouco é uma estória em que cada minúcia
encerra uma moral.
Ela é recheada de locais de desova, presuntos,
liquidações, queimas de arquivos,divisões de capturas,
apagamentos de trechos, sumiços de originais,
grupos de extermínios e fotogramas estourados.
Que importa se as cinzas restam frias
ou se ainda ardem quentes
se não é selecionada urna alguma adequada,
seja grega seja bárbara,
para depositá-las?

Antes que o amanhã desabe aqui,
ainda hoje será esquecido
o que traza marca d’água d’hoje.

Hienas aguardam na tocaia da moita enquanto
os cães de fila do tempo fazem um arquipélago
de fiapos do terno da memória.
Ilhotas. Imagens em farrapos dos dias findos.
Numerosas crateras ozonais.
Os laços de família tornados lapsos.
Oco e cárie e cava e prótese,
assim o mundo vai parindo o defunto
de sua sinopse.
Sem nenhuma explosão final.

Nulla dies sine linea. Nenhum dia sem um traço.
Um, sem nome e com vontade aguada,
ergue este lema como uma barragem
anti-entropia.

E os dias sucedem-se e é firmada a intenção
de transmudar todo veneno e ferrugem
em pedaço do paraíso. Ou vice-versa.
Ao prazer do bel-prazer,
como quem aperta um botão da mesa
de uma ilha de edição
e um deus irrompe afinal para resgatar o humano fardo.

Corrigindo:
                  o humano fado.


Carta abierta a John Ashbery

La memoria es una isla de edición -dice un cualquiera
que pasa, con aire despreocupado,
e inmediatamente borra la tecla y también
el sentido de lo que quería decir.

Agotado el yo, resta el espanto de que el mundo no haya sido
arrastrado junto de golpe.
¿Dónde y cómo almacenar el color de cada instante?
¿Qué trazo retener de la translúcida aurora?
¿Incinerar el leño seco de las amistades chamuscadas?
¿El perfume, acaso, de aquella rosa lívida?

La vida no es una tela y jamás adquiere
el significado estricto
que se desea imprimar en ella.
Tampoco es una historia en que cada minucia
encierra una moraleja.
La vida está llena de locales de freza, fiambres,
liquidaciones, vendettas,
escuadrones de captura,
de trechos borrados, extravío de originales,
grupos de exterminio y fotogramas estallados.

¿Qué importa si las cenizas enfrían
o si aún arden calientes
si no es seleccionada ninguna urna adecuada,
sea griega sea bárbara
para depositarlas?

Antes de que el mañana se desmorone aquí,
todavía hoy se olvidará lo que trae
la marca de agua de hoy.

Hienas aguardan parapetadas en los matorrales mientras
los perros de presa del tiempo hacen un archipiélago
de hilachas del traje de la memoria.
Islotes. Imágenes en harapos de los días idos.
Numerosos cráteres de ozono.
Los lazos de familia vueltos lapsos.
Hueco y caries y diastema y prótesis,
así el mundo va pariendo al difunto
de su sinopsis.
Sin ninguna explosión final.

Nulla dies sine linea. Ni un día sin una línea.
Uno, sin nombre y con voluntad aguada,
yergue este lema como un dique
antientropía.

Y los días se suceden y se firma la intención
de transformar todo veneno y herrumbre
en pedazos de cielo. O viceversa.
Al gusto de cada uno,
como quien aprieta un botón de la mesa
de una isla de edición
y un dios irrumpe al final para rescatar el humano
fardo.

Corrigiendo:

                    el humano hado.

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